O fato de um indivíduo usar determinada droga ou de alegar que não consegue interromper o seu uso não implica, necessariamente, no fato de que este indivíduo seja um dependente químico. O termo viciado em drogas não é sinônimo do termo dependente químico. Vício é uma coisa; dependência química, outra.
O termo dependente químico designa o indivíduo que, após a interrupção do uso de determinada droga, padece de determinados sintomas (os quais, por terem uma causa comum, são reunidos em um grupo e designados pelo termo síndrome de abstinência).
A dependência química é um quadro clínico fundamentalmente orgânico; portanto, algumas noções médicas são imprescindíveis para a sua compreensão.
O termo fisiologia designa a integração das diversas e distintas funções, de todas as diferentes células e partes do corpo humano, em um todo funcional. O corpo humano depende dessa função global, e não das funções de partes distintas, isoladas umas das outras. As necessidades do corpo humano, porém, ultrapassam os limites da fisiologia humana (que enfoca apenas o seu funcionamento interno) e avançam sobre o mundo circundante, impondo, para constituição e sobrevivência deste corpo, a obtenção, por consumo, de certos elementos vitais (p. ex.: a água e o ar). Repito: impondo – porque algo impõe ao ser humano que se ponha em movimento rumo à obtenção dos elementos vitais, são os instintos vegetativos.
Os instintos vegetativos (p. ex.: de respirar ou de ingerir água) irrompem no ser humano, provocando um crescente desprazer que o põe em movimento rumo à obtenção dos elementos vitais capazes de saciá-los. Porém, nem sempre é possível o consumo de tais elementos, e o corpo humano, a fim de manter sua fisiologia, realiza uma série de adaptações internas, gerando grande desconforto e sofrimento, de modo que, caso não sejam obtidos os elementos vitais e não seja restabelecida a fisiologia original, doença ou morte se fará destino.
O termo dependência química designa uma doença orgânica transitória, que resulta da perversão da fisiologia humana e dos instintos vegetativos; o que não é o caso dos termos viciado em drogas e usuário recreativo de drogas, os quais (definirei adiante) se referem às pessoas que, com a ingenuidade da juventude, imaginam-se no controle de uma situação, quando, na verdade, estão prestes a atualizar o mito do Cavalo de Troia.
A pessoa que consome sistematicamente uma droga com potencial de causar dependência química induz o seu organismo a absorver, em seu funcionamento global, um elemento capaz de perverter a fisiologia humana e induzir o seu corpo a tomá-lo como um elemento vital, fato que dá origem a um novo instinto (a fissura), que, por sua vez, tem o poder de por a pessoa em movimento rumo ao consumo desta droga – única coisa capaz de saciar este instinto adquirido. A droga com potencial de causar dependência química funciona como um Cavalo de Troia, veículo da fissura (o instinto em potência que ela contém).
Iludido, tendo subestimado o poder da droga e se imaginado no controle da situação, o dependente químico toma consciência da verdade dos fatos, quando se percebe dominado pela fissura ou açoitado pela síndrome de abstinência. Em primeiríssima instância, a dependência química nasce da imprudência ou da ignorância.
Caso uma força externa impeça o dependente químico de consumir a droga, seu corpo, ainda sob o feitiço da fissura, sentindo a falta deste elemento que passou a tomar por vital, realizará uma série de adaptações internas, gerando grande desconforto e sofrimento (a síndrome de abstinência), e, caso a droga prossiga ausente, tal feitiço perde a força e o corpo humano retorna, automaticamente, à sua fisiologia original.
As provas clínicas de que um indivíduo é dependente químico são a fissura e a síndrome de abstinência; logo, o melhor tratamento para um dependente químico é, obviamente, a internação.
Agora, antes de definir o termo viciado em drogas, é de fundamental importância atentar para o fato de que a população leiga, de um modo geral, costuma confundir o significado dos termos dependente químico e viciado em drogas e empregar os dois como se fossem sinônimos. Isso é um equívoco.
O termo viciado em drogas designa a pessoa que, pelos mais diversos motivos, elege o consumo de determinada droga como o sentido de sua existência ou como um meio de automedicação, passando a gravitar, junto aos demais aspectos de sua vida, em torno deste eixo central. Enquanto o corpo humano do dependente químico toma a droga como elemento vital e se encontra sob o feitiço da fissura, a pessoa humana do viciado em drogas toma a droga como sentido existencial ou como um medicamento. O dependente químico é movido por um instinto artificialmente adquirido (a fissura); o viciado em drogas, por uma falta (ou perda) de sentido existencial ou para aliviar os sintomas de um transtorno mental (p. ex.: o transtorno de ansiedade generalizada, frequentemente observada em viciados em álcool ou maconha).
O desafio que se impõe ao viciado em drogas que não padece de um transtorno mental é o mesmo que se impõe a todos os seres humanos: encontrar (ou reencontrar) um sentido para a sua existência. O que se impõe ao viciado em drogas que padece de um transtorno mental é o tratamento deste transtorno. Para o primeiro, psicoterapia. Para o segundo, psicotrópicos e psicoterapia.
O termo usuário recreativo de drogas designa a pessoa que consome determinada droga, mas não a elege como o sentido de sua existência e não a coloca como o eixo central de sua vida, mantendo-a como um aspecto periférico e descartável. Embora o usuário recreativo de drogas pareça e se sinta no controle da situação, é bom lembrar que, usuário recreativo de drogas ou não, todas as pessoas estão sujeitas às vicissitudes da vida e (1) a perder o sentido de sua existência ou a (2) desenvolver um transtorno mental; logo, todo usuário recreativo de drogas é um viciado em drogas em potencial (e todo viciado em drogas, por sua vez, é um dependente químico em potencial).